Jesus intercede pelos crentes. Esta é uma parte clássica, e muitas vezes negligenciada, da teologia cristã. A oração intercessória foi uma parte do ministério terreno de Cristo (Jo 17; Lc 22.32), e as Escrituras ensinam que agora ele intercede do trono do Céu por nós em sua vida exaltada (Rm 8.34; Hb 7.25; 1Jo 2.1). Mas o que isso significa? E que valor isso tem em nossa vida diária?
Para fornecer ajuda na compreensão da intercessão de Cristo e suas ramificações práticas, eu me correspondi com D.A. Carson, cofundador e presidente da Coalizão Pelo Evangelho, e professor pesquisador de Novo Testamento na Trinity Evangelical Divinity School.
O que é a intercessão de Cristo e onde ela é mais proeminentemente ensinada na Bíblia?
O ministério intercessor de Cristo é mais explicitamente definido em Hebreus 7.25. Com base na sua obra definitiva na cruz e em sua própria ressurreição eterna, Cristo vive perpetuamente para interceder por nós. Isto é frequentemente chamado de ministério sacerdotal de Cristo. Os pontos relevantes sobre o tema são, talvez, mais fortes em Hebreus, embora outras passagens também venham à mente. Por exemplo, João 17 é muitas vezes designado como a “oração sacerdotal” de Jesus. Embora essa não seja a designação explícita feita por João, certamente João 17 identifica Jesus orando pelo seu povo — isto é, neste capítulo ele está empenhado em interceder por ele.
É possível pensar no ministério sacerdotal de Jesus em termos amplos. Poderíamos começar com as imagens fornecidas pelos precursores no Antigo Testamento. O sumo sacerdote do Antigo Testamento, por exemplo, era responsável, no Dia da Expiação, por levar o sangue de novilhos e bodes ao Santo dos Santos e aspergi-lo sobre a Arca da Aliança. Como sumo sacerdote, Cristo traz seu próprio sangue à presença do tabernáculo celestial. Mas as trajetórias das Escrituras são complexas e entrelaçadas: Jesus não é apenas o sumo sacerdote, mas o cordeiro pascal, o rei davídico, o verdadeiro templo, o verdadeiro Israel, e muito mais. Isso significa que Jesus não pode ser sumo sacerdote exatamente da mesma maneira que o sumo sacerdote do Antigo Testamento: no Antigo Testamento as trajetórias se desenrolam separadamente (embora estejam interligadas), enquanto no Novo Testamento muitas dessas trajetórias frequentemente se entrelaçam de tal forma que todas elas apontam para Jesus. Isso significa que a relação entre os tipos no Antigo Testamento nem sempre funciona no Novo Testamento. Assim, por exemplo, Jesus é o verdadeiro tabernáculo (Jo 1.14), o verdadeiro templo (Jo 2), o verdadeiro sacerdote, e o verdadeiro sacrifício. Estas imagens podem ser configuradas de várias maneiras: em Hebreus ele leva o seu sangue para o templo celestial para apresentá-lo a Deus, caso em que ele é o sumo sacerdote, mas não o templo. Sumo sacerdote e sacrifício, sumo sacerdote e templo, sumo sacerdote e rei — Jesus é todos eles, ainda que as configurações sejam variadas. Portanto, falar do ministério sacerdotal de Jesus se torna logo muito rico, altamente entrelaçado com muitos temas do Antigo e do Novo Testamentos, basicamente orbitando em torno da cruz.
No entanto, quando nos concentramos na intercessão de Jesus, nosso sumo sacerdote, os temas tornam-se muito mais focados. Mesmo assim, devemos distinguir entre as orações de Jesus por seu povo feitas antes da crucificação, oferecidas à luz da sua expiação iminente, e aquilo a que Hebreus 7.25 se refere, ressaltando claramente a intercessão de Jesus por todo o seu povo após a cruz. É nisso que eu focarei no restante dos meus comentários.
Como a intercessão de Cristo se relaciona com Sua obra expiatória na cruz?
Em seu contexto, Hebreus 7.25 ilustra a intercessão de Cristo ocorrendo após a cruz. O sacrifício de Cristo é definitivo — ele não tem de ser repetido, diferentemente dos sacrifícios anuais do Yom Kipur. Além disso, ao contrário dos sumos sacerdotes do Antigo Testamento, Jesus tem um sacerdócio permanente: ele vive para sempre, e a morte não pode removê-lo do cargo. No contexto mais amplo, o seu sacerdócio é superior porque é na linhagem e semelhança de Melquisedeque, e não de Arão. Ao contrário de outros sumos sacerdotes, ele é “santo, inculpável, sem mácula, separado dos pecadores e feito mais alto do que os céus” (Hb 7.26), para que ele não precisasse oferecer sacrifícios pelos seus próprios pecados antes que ele os oferecesse pelos pecados dos outros (Hb 7.27). Por todas essas razões, dentre outras, ele “pode salvar totalmente os que por ele se chegam a Deus” (Hb 7.25), precisamente porque está “vivendo sempre para interceder por eles” (Hb 7.25). Em outras palavras, a salvação completa de seu povo depende da eficácia de sua intercessão perpétua, e a eficácia de sua intercessão perpétua depende do sacrifício que ele ofereceu de uma vez por todas, e da sua própria vida eterna.
A letra do hino de Charles Wesley, “Levanta-te, Minha Alma, Levanta-te”, lembra-nos que há uma ligação ainda mais estreita, se é que é possível, entre a morte de Jesus e sua intercessão. Talvez queiramos revisar ligeiramente as palavras da segunda estrofe, mas as palavras da terceira estrofe revelam a conexão de que estou falando:
Levanta-te, minha alma, levanta-te! Livra-te do teu culpado temor;
O Sacrifício de sangue foi em meu favor.
Diante do trono meu Fiador permanecerá;
Meu nome gravado em suas mãos está.
Ele vive para sempre nos céus, para por mim interceder,
Seu amor redentor, seu precioso sangue a defender.
O Seu sangue expiou por toda a nossa raça,
E agora salpica o trono da graça.
Cinco feridas ele enfrenta, recebidas no Calvário;
Elas derramam orações eficazes, elas suplicam fortemente por mim:
“Perdoe-o, oh, perdoe!” , elas clamam,
“Nem deixe esse pecador resgatado morrer.”
Qual é o conteúdo da intercessão de Cristo (o que Ele realmente diz)? Qual é o Seu resultado (O que Ele realmente faz)?
Na reconstrução imaginativa de Wesley sobre o que Jesus realmente diz na sua intercessão, revelada na estrofe que acabamos de citar, Jesus continuamente oferece orações por seu povo, a fim de que Deus continue a perdoá-lo, mediante o fundamento de que a sua própria morte sacrificial satisfez completamente as exigências de Deus. A estrofe seguinte deixa isso claro:
Meu Deus é reconciliado; sua voz de perdão eu ouço.
Ele me tem como seu filho; Eu não posso mais temer.
Com confiança eu agora me aproximo,
E clamo “Pai, Aba Pai!”.
De maneira abrangente, esta é a imagem gloriosa que a linguagem da intercessão celestial de Jesus requer. Mas duas advertências devem ser adicionadas:
Estritamente falando, a linguagem da “reconciliação”, encontrada na primeira linha da última estrofe do hino, vai no sentido contrário do que diz o Novo Testamento: nós é que somos reconciliados com Deus; não é Deus que é reconciliado conosco. Por outro lado, os cristãos se acostumaram, com razão, a falar sobre Deus sendo reconciliado conosco, pobres, rebeldes portadores de sua imagem, uma vez que este pensamento é encontrado no Novo Testamento, embora com palavras diferentes. Se a Cruz propicia Deus aplacando a sua ira judicial, então, pelo mesmo ponto de vista Deus torna-se reconciliado com esses rebeldes, ainda que a terminologia da reconciliação no Novo Testamento nunca apareça exatamente dessa forma.
A imagem invocada no hino corre o risco de introduzir um grande mal-entendido teológico. É absolutamente equivocado imaginar que o Deus Pai está sobre nós em juízo e ira , enquanto o Filho, muito mais amável e acessível, fala com seu Pai em nosso nome e o persuade a um perdão relutante. A verdade é mais complexa, e mais gloriosa. Afinal de contas, a cruz era o plano do Pai, e Jesus vai para a cruz para realizar a vontade do Pai. Deus amou o mundo de tal maneira que enviou o seu Filho. Nunca devemos pensar em Deus em termos tri-teístas, com o Filho pedindo a seu Pai mal-humorado que Ele perdoe pecadores. O Deus trino é um em seus propósitos e desígnios. Ele simultaneamente está diante de nós em ira (todos nós somos por natureza filhos da ira), mas também está diante de nós em amor. O plano da redenção é tanto projeto do Pai como do Filho. Em outras palavras, a imagem da intercessão de Cristo não deve ser percebida como sugerindo que ele está falando ao Pai para que faça algo que o Pai não quer fazer, ou que ele tem que lembrar o Pai do significado da cruz, porque, caso contrário, o Pai poderia se esquecer. Todo o ministério intercessor do Cristo exaltado existe pelo desígnio do Deus trino, e o seu propósito é mostrar, nos termos mais ousados, como a segurança do povo comprado pelo sangue de Cristo, de todos aqueles que o Pai tem dado ao Filho, depende, agora e para sempre, do sacrifício expiatório definitivo de Jesus, e da satisfação absoluta que ele proporciona.
Para aqueles envolvidos em aconselhamento pastoral, quando a intercessão de Cristo poderia ser uma doutrina útil a ser abordada?
A obra de intercessão de Cristo é de valor inestimável para todos os cristãos, pois deixa claro que nossa aceitação contínua diante de Deus é definitivamente fundamentada na total suficiência da cruz. As boas obras, sem dúvida, devem fluir da vida do crente (isso é outro assunto), mas a base única e suficiente da nossa aceitação diante de um Deus santo e, portanto, a garantia de que vamos herdar o novo céu e a nova terra, é a cruz de Cristo. Estas verdades importantes são especialmente necessárias quando os crentes escorregam em uma espécie de teologia baseada em obras que lhes diz que eles não são bons o suficiente para serem perdoados, ou que os rodeia com desespero esmagador devido à derrota moral. Há mais a oferecer em conselho a esses irmãos e irmãs, é claro, mas raramente há menos.
Suponha que crentes estejam lutando contra um pecado habitual e/ou contra uma consciência aflita. Como uma maior familiaridade com a intercessão de Cristo poderia ajudá-los?
Pecados habituais e consciências aflitas nos derrotam de várias maneiras. Onde existem consciências aflitas, é preciso primeiro perguntar se a consciência está pesada por uma culpa real (nesse caso, parte do remédio é o arrependimento) ou por uma culpa falsa (por exemplo, a pessoa se sente culpada ou inadequada devido a condutas que a Bíblia não denota como pecado). Em qualquer caso, os pecados habituais e as consciências aflitas têm em comum que muitas vezes destroem a nossa confiança diante de Deus — a nossa confiança de que nós fomos perdoados, que somos aceitos no Amado, e que a dívida foi paga. (Claro, o Novo Testamento também prevê alguns casos em que os pecados em curso e não confessados são uma marca de conversão espúria, caso em que um sábio conselheiro vai concentrar mais atenção na santidade e justiça de Deus antes de enfocar a cruz e o ministério intercessor do Salvador ressurreto e exaltado.)
Em todos esses casos, compreender a natureza da intercessão de Jesus gera uma confiança tranquila; a garantia que, de acordo com 1 João, traz consigo nossas próprias orações eficazes.
Traduzido por Bruno Nunes
Gavin Ortlund (PhD, Fuller Theological Seminary) é marido, pai, pastor e escritor. Ele serve como pastor principal na igreja First Baptist Church of Ojai em Ojai, Califórnia, EUA. Ele mora na California com sua esposa Esther e o casal tem um filho e filha. Gavin escreve com regularidade no blog Soliloquium. Pode-se seguí-lo no Twitter
fonte https://coalizaopeloevangelho.org/article/jesus-vive-para-sempre-intercedendo-por-ti/